Por Januária Cristina Alves
A frase que dá título a esse artigo foi proferida por um dos maiores artistas brasileiros: o compositor, regente e violoncelista Heitor Villa-Lobos, considerado um dos mais inovadores compositores do século XX e um dos grandes nomes do movimento modernista brasileiro. A frase foi uma resposta à uma pergunta que lhe fizeram sobre as influências folclóricas em sua obra e também uma paródia da frase do romancista francês Gustave Faubert, autor do famoso romance “Madame Bovary” no qual a personagem principal Emma, diz categoricamente ao se apresentar: “Emma Bovary, c’est moi!” (Emma Bovary, sou eu!).
De modo genérico, o que o nosso grande maestro quis dizer é que não seria possível criar uma obra brasileira distante do nosso folclore, de tão embrenhado que ele está em nosso modo de ser, agir, pensar. Ele e sua obra seriam, portanto, a expressão desse folclore que nada mais é do que o conjunto e relações que se originam de provérbios, histórias, danças, músicas, comidas, além da junção das diversas religiões aqui existentes, expressas nos diversos espaços físicos e geográficos de um país do tamanho do Brasil.
Como bem observou Villa-Lobos, o folclore é um elemento central da nossa identidade e ao nos apartarmos dele, esquecemos quem somos e de onde viemos. Dos nossos valores e da base cultural que nos centra e representa: um amálgama dos mais ricos e diversos, que abraça diferentes influências de todos os cantos do mundo.
Agosto é o mês do folclore e desde 2017, quando publiquei o “Abecedário de Personagens do Folclore Brasileiro” (FTD Educação/ Edições SESC São Paulo) venho frisando o quão importante é que nós, brasileiros, possamos celebrá-lo, lembrá-lo, pesquisá-lo e conhecê-lo para além de agosto. O livro, que contém 141 personagens do folclore nacional, descortina essa riqueza em cada um de seus verbetes e como diz o seu subtítulo, além deles, também conta “suas histórias maravilhosas”. Por isso, tem sido uma fonte de descoberta desse nosso imenso patrimônio imaterial para pessoas do mundo inteiro. Foi fonte de referência e pesquisa da série da Netflix “Cidade Invisível” criada pelo cineasta brasileiro Carlos Saldanha, já com duas temporadas de um estrondoso sucesso.
O livro e a série comprovaram a potência desses personagens e de suas narrativas, unindo diferentes gerações em torno de histórias tão antigas quanto o tempo. O livro é adotado em escolas que trabalham esses personagens com crianças e jovens desde a Educação Infantil até o Ensino Médio, é lido e relido por avós e netos, por crianças e idosos, e a série esteve entre as Top 10 em mais de 90 países no mundo inteiro. É como disse Villa-Lobos: “O folclore sou eu”, e eu completo: e tu, eles, e quem mais quiser!
Num mundo complexo, incerto, ambíguo e volátil como o que vivemos, encarar o folclore como uma âncora que nos sustenta é uma possibilidade que deve considerada, especialmente para os pais e educadores. Contar histórias faz parte da condição humana, é o que nos diferencia dos animais, gera empatia e pertencimento.
Fala-se tanto de Educação para Diversidade, Educação Antirracista, Educação Ambiental, para os Direitos Humanos e não nos lembramos que as histórias de tradição oral contêm todos esses elementos em sua essência, e porque foram ouvidas desde os tempos imemoriais, podem ser atualizadas e compartilhadas entre os mais diferentes sujeitos, promovendo um encontro geracional dos mais preciosos para que possamos partilhar saberes e experiências.
As histórias ensinam e nos ajudam a resolver os problemas comuns à toda raça humana, o que faz com que nos irmanemos na luta pelo Bem comum. Quando nos reconhecemos como parte de uma história construída a muitas mãos, compreendemos que nenhuma pode ser contada de uma única maneira, que é possível olhá-la sob diferentes ângulos, ressaltando aspectos e tessituras que muitas vezes passam despercebidas. As histórias do nosso folclore nos contam, com magia e sensibilidade, que “quem conta um conto, aumenta um ponto”, e tudo bem que isso aconteça! E quão fundamental é que saibamos disso para nos tornarmos protagonistas da nossa história e consigamos discernir o fato da ficção (na Era da Desinformação como essa percepção é importante!)
Em tempos que nos sentimos ameaçados pela Inteligência Artificial e assombrados pelas fake news o folclore nos lembra que é preciso seguir contando e recontando histórias, para que nossa expressão e criatividade sigam vivas. Como escreve uma das maiores autoras brasileiras, Ana Miranda, no posfácio da Coleção de Personagens do Folclore Brasileiro (FTD Educação) “… observar seres fantásticos é o mesmo que ir além do que os nossos olhos costumam ver, é aprender que a imaginação tem o dom de levantar todos os mistérios da vida e dar as respostas ao que ninguém sabe nem mesmo perguntar.” Por isso é tão importante que o folclore esteja presente em nossas vidas para além de agosto, hoje e sempre.
#somostodosfolclore
Januária Cristina Alves é Mestre em Comunicação Social pela ECA/USP, jornalista, educomunicadora, autora de mais de 60 livros infantojuvenis, duas vezes vencedora do Prêmio Jabuti de Literatura Brasileira. É pesquisadora do folclore brasileiro e da cultura popular e autora do “Abecedário de personagens do Folclore Brasileiro”(Edições SESC/FTD Educação) e de “Heróis e Heroínas do Cordel”(Cia. das Letrinhas). Também realiza palestras e oficinas para educadores, crianças e jovens, sobre Educação Literária, Educação Midiática e Storytelling.
Para saber mais acesse: www.entrepalavras.com.br
Fonte: Nexo